Nas tevês, sobretudo, propaga-se a diversidade, mas sabe-se que é só máscara. Na verdade, a tal diversidade não existe. Todos estão
enfronhados num mundo em que se precisa trabalhar, ganhar dinheiro para
sobreviver e consumir para gerar novos empregos. Caso alguém queira criar outro
modo de vida, digamos um modo de vida contemplativo, logo é criticado e taxado
de louco ou vagabundo. O bom sujeito é aquele que trabalha e não reclama.
Caso remontemos à antiguidade clássica, perceberemos que
muitos filósofos trafegaram no contrassenso do modo de pensar da maioria de seus
concidadãos. Vejamos Sócrates, Platão e até mesmo Aristóteles. Suas teorias,
que hoje soam tão sensatas, estabelecedoras da civilização ocidental, não foram
logo aceitas. Sócrates acabou condenado à morte; Aristóteles exilou-se no fim
da vida para que a filosofia não sofresse a segunda baixa; e Platão, cronologicamente entre
ambos, safou-se ao criar um sistema invisível que, na aparência, afigurava-se muito
inofensivo. O que podemos salientar entre esses pensadores, no entanto, é que conseguiram
pensar alternativas ao seu tempo.
Voltando ao mundo contemporâneo, pode-se perceber que o
século 20 foi pleno de tentativas de vida alternativa conhecidas como utopias, e muito anterior à época do movimento hippie a vida em pequenas comunidades já
tinha sido experimentada em vários cantos do mundo, inclusive no universo
judaico. Mesmo antes de um capitalismo tão avassalador, já se percebia, porém, que tais comunidades estavam fadadas à dissolução. As fábricas, nos subúrbios
das grandes cidades, necessitavam de mão de obra. O socialismo veio como
consequência a esse chamamento, surgia com a intenção de humanizar o setor
produtivo. Com a impressão de que os meios de produção eram propriedade coletiva,
a vida talvez parecesse mais fácil de ser suportada, embora desde o começo
ficasse claro que poucos seriam aqueles que realmente teriam o poder de mando,
e que os bens do estado estariam sempre distantes do povo.
Finda as utopias, sobretudo as de caráter universalista, a esperança de vida alternativa ainda tentou
sobrevier em pequenas comunidades espalhadas pelo mundo, mas a informação
massificada, cuja expansão foi alavancada em meados do século 20 pelo surgimento de novas tecnologias, não deixou que essas comunidades sobrevivessem. Sempre seria melhor
criar um imaginário em que todos pudessem se tornar felizes usufruindo os
benefícios da civilização, e a reboque disso consumissem produtos que
multiplicassem o capital de quem os produzia, potencializados estes ainda com a
hipotética possibilidade de participação dos cidadãos no capital das empresas cujas
ações são negociadas em bolsas de valores. O instrumento útil à propagação
dessa ideologia foi inicialmente a imprensa escrita, depois o cinema, a seguir o rádio e,
enfim, a TV. Hoje temos o computador, com a internet a propagar o que, no
entender do mundo do Capital, está mais à mão de todas as pessoas, os produtos
que supostamente tornam a vida mais confortável. E tudo está à distância de
apenas um clique. A conta? Bem, isso a gente depois resolve.
Mas apesar do avassalador progressismo, ainda existe
a vida contemplativa. Ela está presente em algumas sociedades que divulgam uma
espécie de gozo interior com o estar no mundo, com a apreciação da natureza e
de obras de arte “puras”. Como o nirvana do budismo, a união em um só ser
entre o humano e a natureza. O budismo e as práticas que levam em conta a
meditação vão por esse caminho, criando para o ser humano certo distanciamento
dos apelos comerciais, que parecem não levar em conta outros modos de vida.
A vida cuja razão de existência seja a arte (mas não arte de
especulação financeira), ainda que para
pequeno público, como a leitura, a escrita de poemas e de romances, a criação
de espetáculos teatrais e pictóricos, também se apresenta como alternativa. O ser humano se sentiria satisfeito pelo prazer proporcionado pelo
processo de criação. Mais uma vez fugiríamos da reprodutibilidade, cujo motor inicial foi o processo de industrialização.
Refletindo sobre a questão da recusa a um modelo, ou modo único de vida, já estamos lucrando, porque aqui existe pelo menos a reflexão,
fato que a engrenagem de produção e consumo tenta solapar.
Outra possibilidade de recusa e
ruptura à via de mão única da contemporaneidade seria a loucura. Mas essa se tornaria problemática,
porque o mundo dos loucos carece de sintaxe, ou se ela se apresenta é
aleatória, em constante mutação, o que afastaria a possibilidade de qualquer
tipo de organização social. Talvez o ponto positivo dessa hipótese seria especular
sobre a série de surtos coletivos (uma espécie de sintoma) observados nas
sociedades que vêm apresentando assoberbamento da neurose consumista.
O gigantismo e a complexidade de um mundo em que predominou
a repetição através da industrialização em massa provocaram o modo de vida
onde o mais importante é ocupar o imaginário das pessoas, não o território.
Quanto mais imaginário conquistado, mas fãs e adeptos a determinados
mecanismos de repetição guiados pela cultura de massa. Esta, enfim, chegou a um
ponto de total expansão com a internet, mas por maior a ironia, seu gigantismo passou a autodevorar todo o sistema, todos os mecanismos criados
anteriormente.
Ainda talvez não seja a hora, porque temos na rede mundial
de computadores a repetição das audiências do chamado “mundo real”, como a dos
jornais impressos, a das emissoras de tevê e até mesmo a das estações de rádio. Mas
quando já tivermos distantes de tudo isso, e com a possibilidade de todos
também serem “agentes”, as audiências tenderão a se pulverizar. Então, a saída
será voltarmos às pequenas comunidades de interesses, e só sairemos delas nos
poucos momentos em que precisemos procurar uma padaria para comprar o pão de
cada dia.
Para que não sejamos tão céticos e catastróficos, um dia
desses descobri um grupo de poetas que publica seus poemas em pequenas tiragens e os divulga apenas entre os amigos. Um deles falou que poesia não
é para dar lucro. E ainda foi mais longe: a única transgressão possível é a da poesia, porque transforma a linguagem, o referencial com que o ser humano se entende, num terreno não tão seguro. Uma vez por mês reúnem-se para ler seus versos em voz alta.
Talvez esse pequeno exemplo de comunidade possa servir de alternativa a quem almeja um mundo mais humano, sem preocupação com a audiência e, em consequência, sem o instinto exacerbado de competição.
Comecei discutindo a possibilidade de algumas atitudes de
recusa ao mundo intensamente comercial em que vivemos, esse universo
reprodutivo que devora todos os sonhos. E chego à conclusão de que, salvo essas
pequenas e talvez importantes tentativas de insistir em opções alternativas, há
a atitude mais drástica, talvez a chamada recusa total, às vezes utilizada por
poetas e filósofos entre outros e outras, a maior de todas as transgressões: o
suicídio, ainda que através do álcool e das drogas.
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