Primeiro romance de
Alberto A. Reis apresenta um narrador suspeito
O leitor de romances não gosta de ser enganado. Essa verdade é mais fácil de ser observada na literatura policial. Entre os cultores do gênero, sobretudo entre os escritores, é regra que o narrador não poder ser o personagem que praticou o crime. Ainda outro ponto: o bom narrador desse gênero, junto com o seu detetive, segue pistas que levarão ao criminoso. Quando este é descoberto, parecerá ao leitor que o próprio narrador vem a reboque do seu herói-detetive. O autor de literatura policial não deve, no final da narrativa, apresentar uma solução em que nas páginas anteriores tenha enganado o leitor. Apesar de alguma controvérsia, em toda a literatura tal concepção de certo modo vigora. Ninguém quer ouvir história de uma voz que, no final do relato, o terá passado para trás. Na literatura brasileira, temos a questão do narrador suspeito. Mas ela geralmente vigora em narrativas em primeira pessoa. Caso este narrador participe da trama e ele seja o protagonista, muitas vezes há de se perdoar o logro. O personagem quer salvar os seus interesses. Neste caso, no entanto, mesmo assim, o logro não será total. O bom leitor olhará com suspeição este tipo de narrador desde o início.
No romance histórico Em
breve tudo será mistério e cinza, de Alberto A. Reis, o leitor
experimentado não sairá da narrativa logrado, mas perceberá o pecadilho que
cometeu o autor. Ao optar por um narrador em terceira pessoa, narrador
onisciente, que paira acima da trama, o autor tenta ludibriar o leitor no
começo da história.
O livro tem início na Paris da segunda década do século XIX.
Um casal de franceses embarca para o Brasil. A mulher é filha de um joalheiro
que dirige uma casa famosa à época, a Gerbe D’0r. François Dumont é convencido
pelo sogro a se aventurar no interior do Brasil, precisamente nas Minas Gerais,
em busca de diamantes.
A aventura é suspeita. Pois não é praxe ser oferecida tal
missão a um homem até certo ponto medíocre, não acostumado a aventuras, tanto
mais quando se trata de um bom frequentador do fastio parisiense. Mas François
aceita a missão e, depois de uma tempestuosa viagem, desembarca com a mulher no
Rio de Janeiro.
Após ser informado da morte trágica do sogro ocorrida em
Paris, por intermédio da Missão Diplomática Francesa no Rio de Janeiro, Dumont
cavalga como o amigo Fernando Murat, de volta à chácara onde este último o
hospeda. Em meio a uma conversa entremeada por longos momentos de silêncio, o
narrador interpõe um flashback remontando a Paris no momento anterior ao
embarque de François. Neste trecho, somos informados de um grande roubo na
Gerbe D’Or. Trata-se do desaparecimento de quatro graúdos diamantes
pertencentes a uma condessa. Na página 79, o narrador em terceira pessoa (é bom
sempre reafirmar esse ponto) engana o leitor: “François, no entanto, estava
triste. Sentia-se só no mundo. Havia perdido, em poucos segundos, o sentido de
sua viagem e a herança do sogro.” Mas próximo ao final, principalmente a partir
da página 489 (capítulo chamado Pedras Mortas), na conversa que tem com Dona
Beja (ela mesma, a tal deusa da beleza de Araxá), François Dumont fará uma
contundente revelação. O leitor, então, perceberá que não foi exatamente isso
que o narrador proferiu no começo do livro.
Outro ponto negativo refere-se aos diálogos. Com exceção de
uma palavra ou outra, mesmo quando trata da fala de escravos, eles seguem um
padrão único. Em determinadas passagens é difícil de acreditar no discurso
indireto livre de personagens como Maquim, Rosa Xangana e Duzinda. Algumas dessas
reflexões beiram problemas filosóficos, difíceis de serem atribuídos a
personagens que estiveram ainda recentemente ligados à vida tribal.
Mas a narrativa não deixa de ter virtudes, principalmente
por se tratar de uma obra com 564 páginas onde a trama principal e histórias
paralelas se desenvolvem e se resolvem satisfatoriamente. O romance é dividido
em cinco livros (ou partes), cada um deles possui título: “Por terras e por
mares”, “Tempo de guerras”, “Batalhas cívicas”, “Rebeliões” e “Passim”. O
primeiro aborda, em sua maior parte, a viagem de François Dumont e a esposa. Também
se situa neste trecho parte da história da joalheria Gerbe D’Or e de seu
proprietário, o sogro de Dumont; a chegada do francês ao Recife e ao Rio de
Janeiro depois de muita intempérie; e a rede de influentes contrabandistas, que
inclui pessoas de renome. Elas facilitam o envio de pedras preciosas para a
Europa, conseguindo a inserção de ouro e diamante no mercado, uma espécie de
lavagem de dinheiro da época. O segundo livro já enfoca a questão da escravatura
e como os brasileiros brancos lidavam com ela; depois introduz política e
aventura na busca desenfreada pelos minérios mais valiosos. “Batalhas cívicas”
e “Rebeliões” descrevem a tentativa de um mundo ainda rústico ter como fiel da
balança o Direito, mas tudo de modo combinado e fingido. Quando as coisas fogem
do controle, desemboca-se nas rebeliões. Na última parte, há o suplício do escravo
Maquim, e a já citada revelação (objeto de controvérsia na escritura do
romance) que o narrador põe na voz de Dumont.
Como romance histórico, o livro nada acrescenta,
proporcionando a personagens reais apenas traços caricatos. A narrativa prima em
apresentar a sensualidade das escravas negras, do cortejo de Dona Beja, em
Minas, e a voluptuosidade de padres homossexuais e pedófilos, sendo alguns
entre eles ricos.
Como todo livro tem um quê de romance policial, Em Breve tudo será mistério e cinza
também vai por esse filão, mas o narrador em terceira pessoa, ao se colocar sob
a perspectiva ideológica do protagonista, elimina qualquer sutileza de
surpreender o leitor em relação ao problema principal que motiva a viagem do
casal Dumont ao Brasil.
Trecho do livro:
François, no entanto, estava triste. Sentia-se só no mundo.
Havia perdido, em poucos segundos, o sentido de sua viagem e a herança do
sogro. Mas de que lhe valeria? Ele nunca teria uma parte significativa daquilo.
Mesmo que a tragédia não tivesse ocorrido, tudo iria bem para Louis e Hubert.
No melhor dos casos, ele e Honorée recolheriam apenas algumas migalhas da
riqueza do sogro. Talvez ainda pudesse escrever ao tio da esposa. Tentar salvar
ainda alguma coisa. Ficaria no Brasil. Acharia enquanto isso seus diamantes e,
em breve voltaria para Paris rico, muito rico, cheio de histórias parecidas com
aquelas que até pouco antes absorvia no clube de leitura de Mme. Baudot.
Sobre o autor:
Alberto A. Reis nasceu em Belo Horizonte em 1947. Mudou-se
para Paris em 1968, onde se graduou em Psicologia Clínica. Lecionou na Argélia
e foi professor da Faculdade de Medicina da PUC – SP. Atuou como psicanalista e hoje é
livre-docente da USP, universidade em que coordena o Laboratório de Saúde
Mental Coletiva. É autor de numerosos artigos e livros sobre psicanálise, saúde
mental e saúde pública. Em breve tudo
será mistério e cinza é seu primeiro livro de ficção.
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