Inaugurado o mundo industrial, com a repetição avassaladora
que as máquinas passaram a oferecer, não se pensou como essa opção coexistiria em
sociedades que não privilegiam a ciência, mas os valores morais e/ou religiosos.
Sabe-se que, em milênios de existência, parte da humanidade não enveredou por
vias que diretamente compactuassem com a hegemônica, que é a da técnica.
As conquistas ocidentais, sobretudo as da área tecnológica,
são frutos da liberdade. Intelectuais, técnicos e até mesmo burocratas não
poderiam chegar ao nível de produtividade atingido caso não lhes fossem permitida
a liberdade de pensamento, de pesquisa e de expressão. Acrescente-se também a
concepção de que, pelo menos a princípio, privilegiar-se-ia a vida material, isto
é, a concepção de existência cuja ética não mais levaria em consideração os valores
metafísicos.
É certo que em muitos lugares, mesmo nos mais distantes e de cultura
muitas vezes diversa, assimila-se o que foi produzido pelo Ocidente e, através
de toda essa produção, consegue-se o sucesso almejado.
A partir dessa premissa, podemos pensar por dois flancos. O primeiro deles é
que o mundo ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, sempre desejou estar à
frente na ciência, não deixando de expandir por todo o globo os seus inventos, objetivando de imediato os consequentes lucros advindos deles. Não há país que não queria
ganhar dinheiro, cobrar royalties por suas patentes, mas são poucas as vezes em
que há o cuidado de se pensar se esses produtos farão bem ou mal a outros
povos. Portanto, a partir do momento em que se possibilitou a disseminação do
computador pessoal e, pouco tempo depois, da internet, não houve a preocupação
com nenhum tipo de estudo sobre o impacto dessas tecnologias mundo afora,
sobretudo em locais onde os valores não são semelhantes aos do Ocidente. Por
outro lado, os países islâmicos, que assimilam a técnica produzida fora de sua
órbita e a adotam para o seu progresso, precisariam refletir a respeito da
origem dessa nova ciência. Ao adotarem o computador pessoal e os sistemas
operacionais oferecidos por americanos e europeus, estão compactuando, ainda
que tacitamente, com as crenças dos vendedores. É muito fácil utilizar a
tecnologia estrangeira que, até certo ponto, serve de resposta às necessidade locais,
mas, ao mesmo tempo, esquecer que essa mesma tecnologia não existiria em
condições adversas à liberdade de pensamento, de pesquisa e de expressão.
Daí é que se há de refletir sobre a responsabilidade de
tantas mortes ocorridas depois da exibição no Youtube de parte do filme dirigido
por esse “suspeito” senhor americano. Apesar de seus antecedentes, não se pode
nem se deve jogar sobre seus ombros toda a culpa de tantas atrocidades cometidas
nos protestos em defesa de uma determinada concepção religiosa. A responsabilidade deve recair também sobre aqueles que pensaram a
economia em termos mundiais e não imaginaram que vender significasse não apenas
lucros, mas também perdas, muitas vezes contabilizadas através de vidas
humanas,
Parte da responsabilidade deve ser atribuída ao outro lado. Caso não desejem compartilhar os mesmos valores do mundo
ocidental, como os de liberdade de expressão (e mesmo o da não existência de
Deus), deveriam manter-se alheios às tecnologias.
É muito fácil ao Ocidente impor seus produtos à roda do
mundo como fetiche e como uma das possibilidades de hegemonia. Ao mesmo tempo, também é fácil ao mundo islâmico usufruir dessa mesma tecnologia e até certo ponto
lucrar com ela mas não querer pagar o preço. Portanto, dividam-se as
responsabilidades. O Ocidente com seu desenvolvimentismo desenfreado, e o Islã, caso queira privilegiar suas concepções religiosas e existenciais,
que não se aproxime nem faça uso dos instrumentos que divulgam aquilo que
chamam de blasfêmia.
Quem se utiliza dos dispositivos advindos de uma sociedade
altamente tecnológica, que atropelou Deus e a metafísica, não pode exigir em
contrapartida posições justificadoras.
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