Júlio Ricardo da Rosa
aprofunda o duplo na literatura através de disfarce permitido pela internet
A existência do duplo sempre foi presente em toda a história
da literatura. Na poesia, por exemplo, através da tensão entre linguagem
figurada e linguagem referencial; na narrativa, sobretudo, através da dialética
entre autor e narrador. Tais artifícios não só expandem a possibilidade de
leitura de cada texto, como também ampliam suas perspectivas de representação e
de criação de realidades.
Sabe-se que autor e narrador são entidades que ocupam
instâncias diferentes. Portanto, ao criar um narrador marginal, não se supõe
que o autor também viva à margem da sociedade. Quando o autor expande esse
duplo ao estabelecer um narrador-autor que cria ainda outro narrador, podemos
dizer que foi instituída a narração em abismo. Trata-se, então, de três
histórias: a do autor em relação a todo o romance, a história que o narrador
nos conta, e a do autor “fictício”, criação do narrador, que também está a nos
propor mais uma história. É o que acontece em O viajante imóvel, de Júlio Ricardo da Rosa.
Não é difícil perceber o ardil, na verdade já a partir do
segundo capítulo. No primeiro, o romance começa com uma aventura no deserto.
Félix Kölderlin presencia uma batalha entre os tuaregues, povo nômade de etnia
árabe, que transita pelo norte da África. Já no segundo capítulo, apresenta-se
outro narrador, cujo nome é Vitor Assis. Este sim, o viajante imóvel. Daí em
diante, quase em capítulos alternados, acompanharemos a trajetória desses dois
personagens. O primeiro a aparecer é escritor de livros de viagens radicais,
mas (ao menos no início) trata-se de um personagem sobre quem é impossível se
fazer publicidade pessoal. Ele nem sequer conhece o seu editor, envia-lhe os
textos por correio eletrônico, em meio às suas aventuras em torno do mundo. O
segundo, Vitor de Assis, é uma pessoa infeliz, alguém que permanece trancado num
apartamento fazendo traduções do alemão para um homem chamado Turco, um
tradutor juramentado. Assis vive vigiado e até certo ponto aprisionado pela
ex-mulher, como já se pode perceber desde o início do livro. Tal fato o
incentiva a tramar um plano espetacular de vingança e de libertação. Ele cria
então o escritor-viajante, que lhe permite faturar com o sucesso de suas
aventuras transformadas em livros. Se essa situação vai perdurar ou se a ficção
será desmascarada, compete ao leitor descobrir.
Uma vez que no mundo das ideias tudo poder ser viável,
analisemos a obra partindo do seu criador, Júlio Ricardo da Rosa. O autor soube
aproveitar muito bem o recurso imprescindível da atualidade, a internet. A rede
possibilita, mais do que em qualquer outra época, que em poucos minutos se
possa tomar conhecimento sobre qualquer assunto (ainda que de modo superficial).
Permite também a qualquer mortal chamar alguma atenção sobre si. Outra
possibilidade da internet é incentivar certo namoro com a fraude,
principalmente quando há a criação de pessoas fictícias. Até que ponto se pode
forjar uma nova identidade e conseguir documentos “oficiais” através de sites pertencentes
ao submundo da rede? Quanto se precisa pagar por isso? Qual o risco que se
corre? Rosa nos mostra um caminho divertido e perigoso, que pode ser até mesmo
verdadeiro. Ao mesmo tempo que consegue dar a Vitor Assis bastante
verossimilhança, o autor cria um Félix Kölderlin titubeante, uma espécie de
falsário amador, que acaba bem sucedido devido à ganância do mercado editorial.
No universo de Kölderlin, o autor das histórias radicais,
quase tudo é possível. O perigo e o risco de morte sempre rondam os
personagens. No de Assis, a aparência é de imobilidade, mas no final há um
exagero surpreendente, maior do que o do autor das aventuras à beira de
vulcões, batalhas, escarpas e ondas gigantes. Como a literatura, no entanto, é
feita muitas vezes de situações que extrapolam a realidade, situações estas em
que o exagero é necessário, entra-se na fantasia e é possível acreditar no
desfecho, que beira o inverossímil.
Há dois momentos no livro que creditam ao autor a qualidade
de saber aproveitar narrativas paralelas. Apesar de não fazerem parte da
história principal, acabam por apresentar boas questões. A primeira é narrada
por Vitor Assis, em meio ao seu trabalho de tradutor. Trata-se do episódio da
vida de um ex-agente do serviço secreto da Alemanha no período em que o país
estava dividido. O homem, após ter vivido no lado oriental, foge para o
Ocidente, e no final vem dar no Brasil. Não devido à profissão que exercera,
mas sim por estar fugindo de duas mulheres. Morara e dormira com ambas
simultaneamente, numa espécie de casamento a três. Um dia descobre que elas
tentaram envenená-lo. O motivo: a herança. O trabalho de Assis é traduzir a
peça jurídica que deverá ser assinada pelo tal homem. Uma das mulheres, a verdadeira
esposa, reclama uma pensão, pois alega ter sido abandonada pelo marido, que, a
seguir, teria fugido para o Brasil. Outro episódio interessante é relatado pelo
narrador-aventureiro. Chama-se: “Na rota da Guerrilha”. Aqui, Júlio Ricardo da
Rosa discute a resistência aos regimes autoritários na América Latina,
incluindo um ex-agente do exército nazista que teria fugido no final da guerra
para a América do Sul. Ele passa a ajudar os guerrilheiros que combatem as
ditaduras locais. Talvez o lado negativo de tantas narrativas seja dar ao livro
um ar de romance total, mas revela a habilidade do autor em inserir histórias
paralelas e demandas diversas a uma narrativa maior.
O título do livro, O
viajante imóvel, permite especulações e diálogos com uma longa fila de
autores, começando por Xavier de Maistre em Viagem
à roda do meu quarto, passando por Machado de Assis, que cita Maistre
várias vezes, até desembocar em Joyce que, com o seu Ulisses, cria o duplo Leopold Bloom / Stephan Dedalus.
Além da alternância entre os dois narradores, com trechos quase
sempre intercalados, há um longo flashback – necessário para conhecermos a vida
pregressa de Vitor –, onde a história se desenvolve por um narrador em terceira
pessoa. No capítulo 8, denominado “Identidade Kölderlin”, voltamos ao narrador
Vitor Assis, permanecendo assim até o final, o que também acontece nos
capítulos intercalados onde há a narração empreendida pelo escritor aventureiro.
Como epígrafe do romance, Rosa cita Ernesto Sabato: “A arte
é quase sempre um ato antagônico, e um homem parado pode ter muito mais
imaginação do que outro que percorre o planeta.” A citação antecipa o
desenrolar da história, que aponta a literatura como a viagem maior, tanto mais
quando lembramos que muitos dos escritores viajantes não lograram fisicamente
ir muito longe, mas suas obras, além de atingirem estâncias inauditas, nos
perseguem e nos mantêm presos a essa eterna peregrinação.
Trecho do livro:
O Lascar estava
adormecido por mais de dez anos e, em sua última manifestação, as cinzas haviam
atravessado a Argentina e chegado até o sul do Brasil. O calor aumentava, e um
leve tremor sacudiu o chão. Luc e Sabine verificaram os aparelhos. Trocavam
frases curtas, os olhares fascinados. O vulcão cuspiu as primeiras chamas, e o
tremor foi maior, quase roubando meu equilíbrio. Enterrei o chapéu na cabeça
enquanto me firmava para retomar a caminhada. Não queria parecer medroso, mas a
situação ultrapassava o razoável. Deveríamos nos afastar e não prosseguir em
direção ao topo. Novo tremor, e uma golfada de lava jorrou do alto da montanha,
alcançando as raras árvores da paisagem e queimando o solo enquanto as cinzas
desciam sobre nós. Gritei, chamando meus companheiros de volta, e Sabine
replicou sem me olhar, enquanto continuava avançando:
– É apenas uma
explosão, não corremos perigo, vai passar logo. (Trecho de Terra em chamas, o mais recente livro de Félix Kölderlin). (O
viajante imóvel, Júlio Ricardo da Rosa)
Sobre o autor (Júlio Ricardo da Rosa):
Nasceu em Porto Alegre. Durante os anos 80, escreveu sobre
cinema para os jornais Zero Hora, Correio do Povo e Jornal do Comércio. É o
responsável pela seleção de Filmes Bourbon, que se realiza todos os anos em
novembro. Publicou os livros Beijo no
escuro e Veludo.
O viajante imóvel
Júlio Ricardo da Rosa
Editora Dublinense, 253 páginas
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