Resenha de Memória da
Pedra, de Maurício Lyrio, Companhia das Letras, 315 páginas)
Memória da Pedra,
de Maurício Lyrio, é um romance que desde o início se mostra complexo. Com um
narrador em terceira pessoa, a história de dois casais desenvolve-se entre idas
e vindas, procurando ora apresentar o presente, ora o passado de cada um desses
personagens. O foco narrativo se detém, no entanto, sobre Eduardo, o protagonista.
Um fator que traz mérito à narrativa é o distanciamento
temporal. Ela se dá no início dos anos 1990, momento da história do Brasil em
que acontece o impeachment do ex-presidente Collor, a que a narrativa faz
referência. Mas, na verdade, não se trata de romance político nem histórico. Essa
ambientação, mais ou menos vinte anos atrás, permite ao leitor analisar com
menos risco atitudes e comportamentos que ficariam comprometidos caso a
problemática discutida no enredo se desenrolasse nos dias de hoje. Mas a
história datada não elimina a sua universalidade. Apesar de referências a
meninos de rua, tendo um deles como personagem coadjuvante, apesar da menção a
protestos pela destituição do presidente da república, o que vigora é o drama
interior dos personagens, seus traumas e conflitos, a violência inerente a cada
um, enfim, trata-se de um complexo romance psicológico onde, na maioria das
vezes, as pessoas, de tão desesperadas, apenas procuram culpados pela própria
infelicidade, esquecendo que a causa de suas tragédias pessoais encontra-se
dentro de si mesmas.
Eduardo é um professor de filosofia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, discute seus pensadores prediletos,
ministra aulas especulativas, mas sua vida particular é pontuada de
desencontros. Até aí tudo bem, pois não se trata de um livro de autoajuda nem é
função da filosofia propor soluções àqueles que lidam com o assunto. Mas o que
nos chega é alguém permeado pela hipocrisia. A literatura brasileira sempre foi plena de
histórias que apresentam, em primeiro plano, personagens pertencentes a classes
abastadas. Eduardo não é rico, mas sua vida de filho único, herdeiro de um
imóvel na Gávea, acrescentando-se o salário de professor de universidade
federal, proporciona-lhe trânsito num universo de requinte, em que há bem mais
do que o necessário para se sobreviver. Problemático nas relações afetivas, faz
par com Laura, uma artista plástica extremamente insegura. Ela vê a relação com
Eduardo como uma tábua de salvação, tábua esta que começa a naufragar em largo
oceano (aproveitando a metáfora, já que o mar é também personagem do romance)
no momento em que ele descobre um segredo seu.
Gilberto é médico, oncologista, tem como mulher Marina, uma
psicanalista irônica, que o absorve, apesar da frieza que o contato com doentes
terminais lhe impõe. O casal é amigo de Eduardo e Laura, mas quanto mais os
dois casais aproximam-se, tanto mais a amizade se esgarça. À primeira vista a
relação dos quatro soa moderna, sem preconceitos. Eles saem juntos, viajam para
Búzios, trocam ideias e opiniões. Não há conflito entre a visão médica de
Gilberto e a filosofia, profissão de Eduardo. Mas há um ponto em que surge o
nó, e ele não desata.
Aqui é necessário acompanhar não o desenrolar da história,
mas estudar a criação desses personagens. Talvez o mais complexo seja Eduardo.
Sua mulher, Laura, soa um tanto frágil. Não como mulher na narrativa, mas como
construção do escritor. Aliás, as mulheres de Maurício Lyrio mostram-se um
tanto previsíveis. Talvez, a mais bem construída, embora seja a que menos
aparece, é Gorda, uma moradora de rua para quem a mobilidade é quase impossível.
Com ela, a narrativa atravessa uma vereda romântica permitindo-nos atração por
esse tipo de personagem, atitude ainda possível até meados dos anos 1990.
Mas, antes de falar nessa contração narrativa, analisemos
também Gilberto, o oncologista. O autor
fez um bom o trabalho de pesquisa ao descrever com certa minúcia os
subterrâneos da profissão do personagem. Desfilam ante nossos olhos doenças
terríveis, seus nomes científicos, os sintomas, a evolução e até mesmo a descrição
da fase terminal. Mas Gilberto tem a superficialidade da maioria dos médicos.
Isso mesmo, muitas vezes achamos esses profissionais importantes, verdadeiros
monstros do saber, mas quando se trata de relacionamento, de filosofia de vida,
de entendimento sobre o humano, são verdadeiros fracassos. Portanto, a
superficialidade em que está imerso Gilberto é fruto da construção bem sucedida
do personagem.
A fissura na narrativa advém por meio da mencionada mulher
chamada Gorda e, antes, pelo aparecimento de Romário, um menino de rua de doze
anos que vende limão num semáforo, na Gávea. Este personagem norteará grande
parte da narrativa. Ele passa a ser não apenas companheiro do professor de
filosofia, mas também o seu contraponto. O primeiro contato entre os dois é um
total fracasso. O garoto pensa que Eduardo é homossexual e está em busca de um
caso. Mas pouco a pouco o professor aproxima-se, estabelece contato e conquista
a sua confiança. A construção do personagem é verossímil, até a linguagem do
garoto mostra-se convincente. O que, talvez, destoe nisso tudo é o que se
segue. Romário passa a morar no apartamento de Eduardo, diante de uma, a
princípio, estarrecida Laura. Daí a razão da ambientação da narrativa no início
dos anos 1990, porque nos dias de hoje tal atitude não seria plausível.
Como ensina Dostoievsky, a literatura precisa exagerar um
pouco. Esta arte feita de palavras não comporta o homem comum, as situações
corriqueiras do dia a dia, a não ser que esse mesmo homem passe a ter um papel grandioso.
Por isso, o aparecimento de Romário proporciona vigor à narrativa, o que não
aconteceria caso ela tivesse apenas como destaque as quatro personagens
iniciais. Até mesmo a bela Anita, uma jovem bibliotecária do Instituto de
Filosofia da UFRJ, soa um tanto frágil. Ou mesmo de Felipe, seu namorado
estrangeiro. Romário e Gorda, que moram no teto do Túnel Velho, em Copacabana,
trazem à narrativa a estranheza necessária para que o romance atinja patamares
mais elevados.
Outro ponto que norteia toda o livro é a constante presença
da morte. Ela já desponta através da especialidade de Gilberto, que vive às
voltas com doentes terminais, e do acidente que vitimou os pais de Eduardo
quando ele ainda era adolescente. Mas é no suicídio que a morte será anunciada com
todas as letras, e causará a perplexidade que somente tal ato pode gerar. Já
nas primeiras páginas há a uma antecipação da narrativa revelando que Marina, a
psicanalista, suicidar-se-á. E, cá entre nós, não é todo dia que uma
psicanalista se suicida.
Interessante o Rio de Janeiro com seus encantos num período
de pré-acirramento da violência que se seguiria com todas as consequências que
já sabemos. Então, o exagero de trazer um menino de rua para dentro de casa
permearia um ideal de filósofo semelhante à aposta de Pascal. Filosofia e
literatura são construções de pensamentos e de artifícios. Apostas fora delas
talvez produzam consequências nefastas, sobretudo numa época em que ninguém
mais é inocente.
Trecho do
romance:
Eduardo sempre foi o mais circunspecto dos quatro, mas era
Gilberto quem nunca atravessava o limite, quem se controlava diante das
insinuações de Marina e do apelo do corpo de Laura. Talvez tirasse dali um
prazer que nunca vinha ao rosto, severo como uma carranca. Por trás do
palavrão, do termo latino ou grego da doença, estava o controle de si e do
discurso, como se pontificasse para a posteridade. Dizia conviver mal com a
ideia de que bastaria combinar na ordem certa cinco ou seis palavras para
responder as questões que o angustiavam: a origem de cada câncer, a cura
definitiva, o momento e o lugar em que, pela última vez, correria os olhos em
torno de si. Todas as respostas estavam disponíveis, em uma página, um
comentário despropositado, uma conversa em um filme, era questão de
discernimento. Não se cansava de repetir em voz baixa, como um mantra, o verso
sobre o câncer que Eduardo recitou uma vez, no vício de querer encontrar em uma
frase a chave para a salvação.
Sobre o
autor:
Mauricio Lyrio nasceu no Rio de janeiro, em 1967. É
diplomata e trabalhou em Brasília, Washington, Buenos Aires, Pequim e Nova
York, onde vive atualmente. Em 2010, publicou A ascensão da China como potência, pela Fundação Alexandre de
Gusmão. Memória da pedra recebeu
Menção honrosa no prêmio SESC de Literatura 2010.
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