Michel de Montaigne viveu no século 16. Ao escrever seus
famosos ensaios, não tinha a pretensão de angariar um grande público leitor.
Pois como se sabe, a literatura da época era divida entre os escritos religiosos,
que na verdade tentavam preservar a Igreja Católica dos reformistas, os
primeiros lampejos do que mais tarde se viria a chamar de ciência, e o que sempre
se costumou nomear literatura e filosofia, na verdade uma herança da
antiguidade clássica. O escritor francês, com seus textos, inaugurou um novo
gênero que ainda não possuía nem nome nem leitores, o ensaio. Alguém há de
perguntar: por que então Montaigne escrevia? Segundo ele, para satisfazer a si próprio,
para que pudesse entender melhor a vida e para acostumar-se à ideia de que era
impossível escapar à morte. E assim viveu o autor. Sua escrita traz tal
sensualidade, que talvez tenha inspirado Roland Barthes quatro séculos depois a
escrever “O prazer do texto”. Montaigne viveu a liberdade (que sempre se quis
como um direito humano) por meio da exposição de suas ideias e da construção de
sua literatura. Em meio a um período crítico da história da humanidade, fins da
Idade Média e começo da era moderna, o escritor talvez se tenha tornado o
primeiro intelectual até certo ponto independente, um não especialista que, com
erudição, disserta sobre os mais variados assuntos e, ainda que se sentisse cristão,
fundamenta suas ideias não no que a religião prega, mas na dúvida que todo
leigo traz dentro de si, o desamparo a que o homem está submetido, e o
inevitável fim que, mais cedo ou mais tarde, teremos de enfrentar.
Assim como os textos do clássico francês, a literatura
sempre necessitou daqueles que a utilizassem para discutir não apenas a
condição humana, mas também para preservar a memória. Nessa linha de filiação, situa-se
o memorialismo, gênero que resgata o passado e o guarda da perspectiva de
desaparecimento. O homem de carne e osso está fadado à morte, mas suas obras
não. Enquanto houver um humano sobre a face da terra, este deverá saber que é
herdeiro de tudo que aqui foi produzido, sobretudo quando se trata de ideias e
arte.
Guardadas as devidas proporções, nossa literatura apresenta
um herdeiro clássico dessa tradição que, no Ocidente, começou com Montaigne,
realizou-se plenamente no século 20 com Marcel Proust, e tem Barthes como
espectador e estudioso privilegiado. Na literatura brasileira, esse herdeiro,
pouco conhecido principalmente entre os leitores mais jovens, chama-se Pedro
Nava (1903-1984). Sua obra, em grande parte memorialista, traz no bojo a
discussão da condição humana, ensaística que permeia os livros de todo escritor
que sobrevive ao seu tempo. Filho de médico, nascido em Juiz de Fora Nava
tornou-se cedo também médico famoso e reconhecido, tendo ocupado importantes
cargos na administração da saúde pública. Mas a medicina não lhe foi
suficiente. Quando ninguém esperava, já em tempo de aposentadoria, despontou
como escritor requintado trazendo à tona o passado não só em que aparece como
protagonista, mas também o da intelectualidade brasileira. Seu primeiro livro, “Baú
de ossos”, resgata não apenas o tempo perdido de sua família e de parentes próximos
que remontam ao século 19, mas traz muitas reflexões sobre o período. Desde
cedo o autor privou da convivência com pessoas que vieram atuar como atores
principais na vida cultural, intelectual e política do país, como o escritor e
poeta, seu tio, Antônio Salles (amigo de Machado de Assis, recusou candidatura
à Academia Brasileira de Letras) e entre muitos outros com os irmãos Afrânio e
Afonso Arinos, e Prudente de Morais Neto.
Em “Balão cativo” o autor remonta à sua infância em Juiz de
Fora, cidade para onde voltou logo após a morte do pai. Rememora a vida
provinciana local, as pessoas famosas que desfilavam na rua principal da
cidade, homens e mulheres que na verdade também frequentavam a sua casa. Depois
relata a mudança com a mãe e os irmãos para a casa do avô materno, em Belo
Horizonte. Na recente capital mineira, ingressa no internato do Colégio
Anglo-Mineiro, instituição dirigida por ingleses que fez fama à época porque
abria mão do latim, do catecismo e primava pela prática de esportes,
principalmente do recém-introduzido futebol. Depois, muda-se para o Rio onde
passa a morar com os tios, no Engenho Velho. Na verdade, sua vinda para a
capital da república acontece devido à necessidade de continuar os estudos
ingressando, já adolescente, no internato do Colégio Pedro II, em São
Cristóvão. Há toda uma pintura da sociedade carioca da segunda década do século
20, dos passeios pelos arredores, de sua assídua frequência ao cinema Velo, na rua
Haddock Lobo, das idas de bonde ao centro da cidade acompanhando o tio Salles,
onde visitavam o que havia de mais importante, inclusive a livraria Garnier, na
rua do Ouvidor. Ali, ainda menino, foi apresentado a vários escritores famosos
à época, como Coelho Neto, João do Rio, Gilka Machado, Silva Ramos, João
Ribeiro, Alberto de Oliveira, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac e até a um
Lima Barreto “todo ardido e suado de vir rolando de seus subúrbios”.
A obra memorialista de Nava é composta por seis volumes: “Baú
de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão de Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-trevas” e “Círio
perfeito”.
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