Apesar de contrariado, chegou o dia em que eu deveria ir à benfazeja vistoria. Um motivo a mais de sobressalto é que tenho um veículo antigo, sempre na mira de impetuosos e aborrecidos fiscais. Como de praxe, fui na expectativa de uma longa espera. Deixei livre toda a manhã de quinta-feira e levei comigo um livro, 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga. O posto designado foi o Machado de Assis, no Catete. Fiquei a matutar se não teria sido melhor levar a obra completa do fundador de nossa aclamada Academia Brasileira de Letras.
Ao dobrar à direita após a praça José de Alencar, deparei-me com o posto do Detran. Uma enorme fila vinha de lá de dentro até quase sobre a calçada. Parei ainda na rua, junto ao meio-fio, e esperei que a fila se movimentasse para eu avançar posto adentro sem obstruir a travessia dos pedestres. Mas o motorista de um enorme automóvel, acho que desses importados (ou meio importado, não sei, dizem que as peças são fabricadas em outros países e o carro montado aqui), pôs-se a buzinar para que eu me adiantasse. Ainda assim esperei, indo à frente apenas quando pude parar dentro do posto, no final da fila. Olhei o retrovisor e constatei o apressado motorista atrás de mim, obstruindo o passeio. Enquanto isso, um ágil motociclista veio pela contramão e entrou no posto, parando sua moto bem à minha frente, como se eu e os outros que estavam atrás não existíssemos.
A fila andou com certa lentidão, a princípio. Enfim, chegou a minha vez de apresentar os documentos na guarita de entrada. Depois fui autorizado a dar a partida e posicionar meu carro na fila que me levaria à aguardada vistoria.
Parti para essa segunda etapa e encontrei quatro ou cinco veículos posicionados à minha frente. Achei então que era o momento de abrir meu livro. Sempre acreditei que a leitura faz o tempo passar mais rápido. Além disso, eu não me angustiaria com o pensamento de o meu carro, velho de guerra, ser reprovado na inspeção.
Li em primeiro lugar a crônica “Passeio à infância”, em que Rubem Braga mescla presente e passado. No episódio, ele convida uma amiga a voltar à meninice e se portar como criança. Assim, os dois poderiam ser mais felizes. Depois mergulhei na crônica seguinte, “A companhia dos amigos”. Aqui, o autor narra um jogo de futebol marcado para as areias da praia de Copacabana no longínquo dezembro de 1946. O jogo seria entre o time do próprio bairro contra o de um combinado de Ipanema e Leblon. No time de Copacabana, desfilavam nomes como o de Di Cavalcanti (no gol), o próprio autor (na zaga), Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacir Werneck de Castro, o escultor Pedrosa e o crítico Paulo Mendes Campos. Ia eu pleno de interesse pela partida. Acompanhava pernas que ora acertavam a pelota, ora acertavam as pernas dos amigos, bolas chutadas por cima da baliza, mesmo que nem baliza houvesse, faltas que não eram marcadas porque, como diz o autor, não havia juiz, “o que facilitou muito a movimentação da peleja”, quando ouço alguém me chamar. Era um dos fiscais. Eu devia adiantar o veículo, estava na hora da minha vistoria. Nem pude satisfazer a minha curiosidade em saber o resultado final de tão honrosa pelada.
Veio aquela chateação toda. Primeiro acelerar a dois mil e trezentos giros e manter a aceleração para que se pudesse medir a emissão de gazes. Depois tive de testar lanterna, farol baixo, alto, esguicho de água no para-brisa, luzes de alerta, setas, luz de marcha-ré. O que mais? Ah, sim, extintor, triângulo e estepe. Surpreendi-me ante a presteza do fiscal, que era jovem e simpático. Ainda alertou-me que, caso eu tivesse comprado o dito extintor em tempo recente, que fosse à loja reclamar, porque o carregamento estava encima da marca mínima, o que não o invalidava, mas deixaria o tempo de sua funcionalidade reduzido.
Voltei a casa feliz por ter a aprovação na vistoria, mas preocupado. Queria saber o mais rápido possível o placar daquela peleja. Que não me acontecesse nada pelo caminho, nem um mínimo acidente (já pensaram, morrer sem saber quem ganhou?). Logo ao entrar em casa abri o livro e pude constatar que a valente equipe de Copacabana vencera os dois jogos, 1 x 0 e 2 x 1, e que foram jogados em três tempos. Consta ainda que, apesar de ausentes, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda e Afonso Arinos de Melo Franco reforçariam o Copacabana num próximo encontro. Enquanto isso, o combinado Ipanema-Leblon aguardava por Fernando Tude e Édison Carneiro. Esses não faço a mínima ideia de quem foram, mas espero que não tenham decepcionado.
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