segunda-feira, junho 02, 2014

Malhas que o império tece


A literatura portuguesa contemporânea sempre nos brinda com boas obras, e Peregrinação de Enmanuel Jhesus (Editora Tinta da China), de Pedro Rosa Mendes, segue a mesma trilha. Trata-se de um livro que descreve todo o percurso que resultou na independência do Timor-Leste do domínio da República da Indonésia, em 1999. Mas para os amantes da literatura a vantagem é que a História é narrada em forma de ficção.

Já no capítulo de abertura, Matarufa, veterano da resistência timorense, relata o dia em que a ONU anunciou o resultado oficial do plebiscito que reconheceu a pequena ilha como país independente: “Às 9 horas da manhã de sábado, 4 de setembro de 1999, no Hotel Ma’hkota, em Díli, Ian Martin, chefe da missão internacional, anunciou os resultados da consulta popular em Timor-Leste: 21,5 por cento tinham votado a favor da autonomia, 78,5 por cento votaram contra.” É preciso esclarecer que “a favor da autonomia” significava permanecer como região “autônoma” da Indonésia, o que não foi a vontade dos habitantes de Timor-Leste, pois a maioria optou pela independência.

O romance possui um eficaz artifício literário. Começa como um auto de missão levado avante pelo bispo Per Kristian Kartevold, da Igreja da Noruega (outubro/novembro de 1999). Isto quer dizer o seguinte: trata-se de uma investigação sobre o suposto paradeiro de um nativo, afilhado deste bispo, que teria desaparecido no Matebian (montanha sagrada conforme a tradição local), exatamente no dia do plebiscito na ilha.

Em forma de inquérito, são enumerados vários personagens que teriam concordado em falar sobre o desaparecido, sobre o país e, enfim, sobre tudo que estava relacionado à luta pela libertação. Não escapam narrativas sobre as tradições dos vários povos que formam a etnia timorense, mesmo aqueles que antecederam a chegada dos portugueses. É sempre bom lembrar que a chegada de Portugal à região data do segundo decênio do século 16. Entre os personagens que depõem neste inquérito literário, encontram-se pessoas que estiveram ao lado da resistência timorense e outras que atuaram junto à administração da ilha sob o domínio da Indonésia ou fizeram parte do seu serviço secreto. Como se sabe, a Indonésia invadiu o Timor logo após a saída dos portugueses, em 1975.

Ao apresentar testemunhos de personagens que estiveram em ambos os lados da luta pelo domínio do Timor, a narrativa acaba por tornar-se polifônica. São oito pessoas (sete homens e uma mulher, entre os homens há um padre) que contam a história do país, cada um sob a sua perspectiva. O romance de Pedro Rosa Mendes, com isso, filia-se à narrativa de António Lobo Antunes, ficcionista que melhor soube ousar nas letras lusitanas. A influência de Antunes pode ser observada não apenas na forma (organização dos parágrafos, diálogos e pontuação), mas também na repetição dos mesmos acontecimentos sob pontos de vista diferentes.

Além desses aspectos estruturais, é possível perceber no romance o mal que toda espécie de colonialismo foi capaz de causar mundo afora. Até mesmo a presença portuguesa, que acabou por predominar porque permaneceu durante muito tempo no local e deixou como herança a língua, é discutida pelo autor. Portugal colocou uma centelha a mais na já conturbada rivalidade existente na região à época das grandes navegações. Povos de Java e de Sumatra havia muito pretendiam o domínio da região.

No final do romance, o autor empreende uma viagem à Noruega, aonde vai ao encontro do tal bispo que seria o autor do relato que nos apresenta. Após boas observações sobre o país nórdico, os contrastes com Portugal e com o Timor, o suposto “editor” (este seria o papel de Pedro Rosa Mendes na organização do livro) estende sua viagem ao Polo Norte, exatamente à cidade onde o bispo reside, localizada em território russo. Ali encontra o religioso com a saúde já bastante debilitada, mas ainda capaz de lhe fazer revelações que proporcionam novo alento às suas investigações.

Talvez, o maior êxito do romance seja a bem sucedida exposição do caráter mágico relativo à resistência das hostes timorenses contra os opressores, sejam eles de onde quer que tenham vindo. Tais segmentos lembram o realismo mágico das literaturas da América Latina. Na luta pela liberdade, até mesmo os ancestrais estão sempre de prontidão, habitando um passado que de certa forma revela-se sempre presente, ou um presente que não se atemoriza diante de um duvidoso futuro.

Outro ponto digno de nota é a descrição das atrocidades perpetradas pelas forças de ocupação da Indonésia, que, segundo a narrativa, não pouparam velhos, mulheres e crianças, condenando todos à fome, à miséria, à morte.

A estada de Pedro Rosa Mendes no Timor-Leste, a título de fazer uma série de reportagens sobre a perspectiva da região após a independência, acaba por revelar não apenas a escolha do povo local pela independência e pela língua proibida pela Indonésia enquanto esteve no poder, o português, mas ainda esclarece que, no mundo atual, cultura alguma é capaz de ser autossuficiente.

Trecho do romance:
Tenho uma memória pequenina de meu pai. Ir aos ombros dele quando, ao descermos do Matebian, um soldado indonésio nos fez parar e ordenou
Dá a criança à tua mulher porque tu ficas aqui,
é essa recordação que tenho, um soldado de boina vermelha, arrancando-me aos braços de meu pai, falando em indonésio, e dando ordens através de um intérprete timorense,
Larga o rapaz, tu és preciso aqui para ajudar as milícias.
Eu nasci em 1974, tinha três ou quatro anos na altura, não entendia nada do que estava a acontecer. O meu pai não queria dar-me. O soldado indonésio arrancou-me e deu-me a minha mãe. Vieram separá-la de meu pai também. Lembro-me dos gritos nossos e deles misturados. Uma bulha. Depois, mais nada. A minha mãe, os meus irmãos e eu continuámos descendo a encosta. Meu pai ficou para trás. Parámos mais abaixo para dormir e esperar se viria ter conosco. Pelas doze da noite ouvimos uns disparos e a minha mãe disse
O vosso pai já morreu. Vamos embora.

O autor:
Pedro Rosa Mendes nasceu em 1968. É autor de uma obra heterogênea que engloba ficção, ensaio e reportagem, com incursões no teatro e na poesia. É autor de quatro romances – Baía dos tigres (1999, prêmio Pen de narrativa), Atlântico (2003), Lenin oil (2006) e Peregrinação de Enmanuel Jhesus (prêmio Pen de narrativa 2011). Atualmente Pedro Rosa Mendes vive em Genebra, na Suíça.