terça-feira, outubro 16, 2007

Hércules
A sala número um do Espaço Parada de Cinema não tinha nem um quarto da sua capacidade completa na segunda sessão de sexta feira. O filme, interessante e bem recebido pela crítica, não era para o grande público. Quando faltavam cerca de quinze minutos para o término da sessão, uma explosão seguida de um princípio de incêndio em uma das filas de poltronas assustou os espectadores, que correram para as saídas de emergência. Mas Rafael Célio Lancelloti, 20 anos, estudante de medicina, não conseguiu escapar. A explosão ocorreu ao seu lado e o deixou inconsciente. Ele estava acompanhado da namorada. A moça, que tentou de todas as formas tirá-lo de entre as chamas, queimou as mãos mas não obteve sucesso. Quando a brigada de incêndio dominou a situação, um dos homens percebeu que o jovem estava muito queimado. Levado às pressas para o Hospital Miguel Couto, não resistiu por mais de dois dias. O fato causou comoção na cidade e abriu uma ferida que na verdade nunca esteve cicatrizada.
As investigações se iniciaram sob a responsabilidade do titular da delegacia de Botafogo. A perícia detectou a presença de pólvora, pedaços de chumbo e ferro, concluindo que o incidente na verdade havia sido provocado por um artefato caseiro. Não havia pistas e nenhuma das pessoas que assistiram ao filme naquele dia compareceu para depor. Os jornais fizeram muitas conjecturas sobre o episódio. O fato de o filme ter como tema o período da ditadura militar levantava suspeitas a respeito da origem do atentado. A moça ainda traumatizada prestou depoimento, mas disse que não vira ninguém nem nada percebera de suspeito em torno das poltronas em que haviam estado.
Os dias se passaram e as investigações não iam adiante. Outro fato, no entanto, acontecido no mesmo bairro, fez o incidente voltar às manchetes e possibilitaria a descoberta do autor do atentado: outra bomba explodiu, desta vez sem provocar vítimas, no banheiro de uma escola do mesmo bairro, escola freqüentada por estudantes de famílias de classe média alta da Zona Sul carioca. A perícia esteve também no local (embora a direção da escola preferisse manter o incidente sob domínio interno e resolvê-lo à maneira da casa) e constatou que o artefato era muito semelhante ao que explodira na sala de cinema.
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Como gostava de estudar, George sempre conseguia as melhores notas. Quando o professor de história disse que naquele semestre iriam estudar o período dos governos militares, alguma coisa afetou-lhe o equilíbrio.
Não quis acreditar na versão do professor. Procurou bibliografia especializada sobre o assunto nas principais bibliotecas e em todos os locais onde houvesse possibilidade de se fazer uma pesquisa. Não era possível ser verdade o que os livros diziam. Como descobriu o nome de seus familiares envolvido no episódio, acreditou que tinha havido um complô. Seu pai e avô eram muito afetuosos, não seriam capazes de cometer tais atrocidades.
Certa vez tentou estabelecer um diálogo à noite, após o jantar, mas não queriam tocar no assunto; sempre que investia com alguma pergunta sobre aquele período, desconversavam.
Numa noite, voltava para casa e ouviu um jovem gritar em sua direção. De início não entendeu, mas depois descobriu do que se tratava. Quis falar ao avô, mas esse lhe deu um bom dinheiro para que aproveitasse o fim de semana e desconversou. Recorreria a quem? Não havia sequer uma publicação que defendesse o governo militar, que dissesse que este agira com correção. Seriam os integrantes daquele governo tão covardes? Não teriam um nome a zelar?
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Ronaldo tinha alguns conhecimentos. Andava às vezes com gente ligada ao narcotráfico, conhecia malandros e contraventores. Foi então que George teve a idéia de contar com a ajuda do colega de escola.
– Pra que você quer uma bomba? Isso pode lhe trazer problemas, compreende?
– Quero que você me apresente alguém que mexe com isso. Pago bem, garanto. E você até pode ganhar uma comissão.
– Comissão? Que comissão... Você acha que eu preciso de dinheiro?
– Então me ajuda, prometo que não conto a ninguém.
– O que eu posso fazer é lhe apresentar uma pessoa. Daí e diante é com você. Mas me responda só uma coisa: o que você vai fazer com uma bomba?
– Apenas uma experiência.
Apresentou-lhe um ex-cabo do exército, que pertencia ao movimento, na Providência.
– Garoto, em primeiro lugar temos que combinar o preço, não trabalho de graça.
– Dinheiro não é problema – disse logo George.
– E espero que você não queira brincar com a verdade. Uma bomba é uma bomba. Lembra a época dos militares? Você ainda não tinha nascido, não é mesmo? Eles usaram algumas dessas.
A quantia foi paga. Após uma semana, tinha recebido as instruções e o próprio artefato.
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A praia de Copacabana ostenta várias redes de vôlei, campos de futebol e até mesmo redes para o jogo de peteca. O posto seis é o local preferido por pessoas de maior poder aquisitivo, entre eles aposentados e militares reformados, que na verdade moram nas proximidades. São freqüentadores assíduos do calçadão e da faixa de areia. Vão ao local quase todos os dias para manter a saúde ou a forma física. Dilermando, um senhor que beira os setenta anos, não é diferente dos demais. Diariamente caminha pelo calçadão da Av. Atlântica e depois joga vôlei ou peteca com amigos ou conhecidos.
Numa manhã de maio, enquanto vencia com violentos arremessos seu adversário mais tradicional no jogo de peteca, não percebeu quando um de seus empregados atravessou a avenida e esticou os olhos com a intenção de encontrá-lo. A tarefa não foi difícil. A manhã ainda ia de sol baixo e a praia tinha poucas pessoas.
– Senhor, há um telefonema urgente. É alguma coisa sobre seu neto.
Aquele senhor de pele tostada, corpo em forma, exemplo de saúde para os de sua idade, cessou de imediato a partida.
– Aconteceu alguma coisa grave com ele?
– Não, acho que não com ele.
– Mas que notícia sem pé nem cabeça você está me transmitindo? – falou autoritário.
– A pessoa que lhe quer falar é o titular da delegacia de Botafogo; ele não quer incomodá-lo, disse que se for preciso vem à sua casa.
– Mas o que será que aconteceu?
– Não sei, general, ele não quis me dizer.
Dilermando tomou a toalha, enxugou primeiro o rosto, depois o tórax e se pôs a caminhar com passadas largas em direção a um dos prédios da avenida.
*
– Eu vou te matar, filho da puta, quem foi que explodiu a bomba no colégio?
– Não sei.
– Não sabe? Mas é você que entende do assunto; foi você que me apresentou aquele homem...
– Não sou eu apenas que entendo de bombas, nem sou o único a conhecer gente do movimento.
– Uma pessoa morreu há duas semanas. A polícia pode encrencar a gente.
– Uma pessoa morreu? É mesmo? Acho que eu sei quem foi o autor...
– Autor? Autor você vai ver agora!
George era muito forte, tinha mais de um e noventa. Pegou o colega num golpe certeiro. Arrebentou-lhe o nariz. Depois o agarrou pelo pescoço e sufocou-o durante longo tempo. Ronaldo tentava resistir. Apesar de menor que George, não desistia da luta. Quando conseguiu soltar-se, ainda ofegante e com o sangue a lhe escorrer das narinas, disse:
– Por que você fez isso? Todos sabem sobre esse assunto. Todos! Todos sabem quem foi seu pai e seu avô. Aonde você queria chegar? Você matou uma pessoa, compreende? Uma pessoa!
– Eu não queria matar ninguém, foi um acidente.
– Acidente? Você deve estar louco, não é isso que dizem os jornais. Esse assunto estava esquecido, até os derrotados estavam acomodados...