sexta-feira, maio 25, 2007

Doutor

O empregado do bar se aproximou respeitoso da mesa onde se encontrava Arlindo.
– Doutor, tem uma moça aí querendo falar com o senhor.
– Que moça?
– Aquela – disse apontando para o fundo do bar –, que está perto do banheiro feminino.
O mercadão de Madureira começava o dia de terça-feira sem muito movimento. O local, que é visitado por todo tipo de gente e serve principalmente a quem procura mercadorias baratas, possui em seus pequenos boxes e lojas comércio bastante variado. Ali vendem-se diversas bugigangas: material para festas, material de papelaria, artigos de armarinho, artigos religiosos, de cabeleireiro, flores, balas e doces (estes procurados por ambulantes que trabalham nas ruas e nos transportes coletivos), ferragens, pequenos animais, rações entre outros; ultimamente, já há até mesmo a presença de lan houses. Nas horas de movimento, lanchonetes e bares servem de refúgio àqueles que precisam de alguns minutos de descanso, desejam matar a fome ou saciar a sede através de um copo de refrigerante ou mesmo de uma cerveja.
Num desses bares, a presença de Arlindo, ou Doutor, como é mais conhecido, é diária. Sua mesa é forrada com uma toalha especial, toda quadriculada, e vez ou outra ele seca o suor da testa por meio de um guardanapo de pano, que, no local, é também exclusividade dele. Este senhor, um tanto gordo e vestido de terno de linho branco, controla o jogo no local. Dizem que a toalha quadriculada é para debochar dos policiais, já que estivera preso inúmeras vezes mas sempre se saíra bem, tornando-se cada vez mais próspero.
– Diga a ela que é pra vir aqui.
O empregado fez um leve movimento com a cabeça e se retirou. Instantes depois, a moça se aproximou.
– Bom dia – disse entre tímida e enigmática.
– Bom dia, sente-se, tenha a bondade.
– Obrigada.
– Está servida? – perguntou enquanto enchia meio copo, com água mineral.
– Não, não, obrigada – agradeceu mais uma vez.
– Em que posso lhe ser útil?
– Gostaria de pedir um favor ao senhor.
Arlindo assentiu num gesto largo e bonachão; repousou o copo sobre o mesmo lugar onde estivera e a mirou por cima dos óculos de leitura, que ele raramente retirava.
– Qual a sua graça?
– Lindimar.
– Lindimar, bonito nome. Lembra-me das vezes em que trabalhei em Niterói.
– Uma amiga indicou-me o senhor.
– A mim? – pareceu surpreso.
– Sim. Diz que o senhor é muito afetuoso e, cá entre nós, não resiste às mulheres bonitas.
Arlindo desfez a posse e se pôs a rir, alisou de modo automático um pequeno trecho do forro da mesa e a olhou de novo, voltando à seriedade anterior.
– Está calor, peça alguma coisa – dirigiu-se a ela como que para quebrar o constrangimento.
– Não, não desejo nada, obrigada.
– Então me fale, vai, qual é o favor que desejas de mim?
– Uma pulseira de ouro.
Doutor, que já passara por quase tudo na vida, não achou surpreendente o pedido. Ainda repetiu a última palavra da moça, só que em forma de pergunta:
– De ouro?
Ela meneou a cabeça afirmativamente e se fez de encabulada.
– Já que seu pedido é irrecusável, fechamos o negócio.
Sinalizou ao garçom e pediu mais uma garrafa de água.
***
A Estrada do Portela é avenida de tráfego intenso a qualquer hora do dia. O viaduto, que atravessa a linha férrea, tem como cenário quase permanente ônibus e automóveis, o que intensifica a paisagem urbana de modo irremediável. Imagine-se o local às duas horas da tarde, num dia de verão.
O dia era o seguinte ao encontro no bar do mercadão. Arlindo e Lindimar atravessaram pela passarela. De cima, puderam observar o fluxo de pessoas nas ruas principais e na própria estação de trens. Ao desceram no lado oposto, caminharam durante alguns minutos pela calçada estreita. Fazia muito calor. Doutor não abandonava o lenço branco, que trazia em uma das mãos; vez ou outro o usava para secar o suor. Seguiram por uma rua secundária, acompanharam o casario antigo e depois entraram num velho sobrado. No segundo andar, havia uma tabuleta: Jóias – ouro e prata – Irmãos Xavier.
O homem de terno de linho branco cumprimentou um rapaz, o único funcionário do local. Ao reparar o ilustre visitante, pediu que aguardasse e desabou numa assustada correria em busca de um dos sócios da loja. Alguns minutos depois, entrava Seu Moysés, um senhor de mais ou menos sessenta anos, corpo magro, cabelos brancos, óculos estreitos. Procurava sempre demonstrar muito interesse sobre tudo que vendia; agia como se cada objeto fosse verdadeira relíquia.
– Doutor, que grande prazer tê-lo aqui, quanto tempo! O senhor não vai ficar de pé, aí, entre, sente-se, aqui atrás do biombo há uma poltrona confortável, tenha a bondade.
– Não, obrigado. Agradeço a gentileza. Estou com pressa. Peço que atenda a moça. É gente minha. Ela quer uma pulseira. De ouro, seu Moysés, de ouro.
– Oh, claro, pode deixar, será um grande prazer tê-la como cliente.
Arlindo cumprimentou-o apenas com um breve gesto, depois sorriu para Lindimar e disse:
– Procure-me guando tiver tempo.
Ela agradeceu com ligeiro sorriso.
Depois, Arlindo desceu a escada, seus passos eram firmes e compassados; esfregava o rosto com o pequeno lenço.
***
Alguns dias depois, recebeu de novo a visita de Lindimar.
– E, então, gostou da pulseira? – perguntou como que surpreso.
– É linda! Adorei. Vim pra mostrar a você.
– Oh, que beleza! – exclamou enquanto tomava nas mãos o braço da moça –, é realmente maravilhosa.
– Também vim até aqui para agradecer.
– Não há de quê. Sempre que desejar alguma coisa e isto estiver a meu alcance, pode contar comigo.
Lindimar parecia querer dizer algo mais, mas não se sentia à vontade. Depois ensaiou algumas palavras.
– Sabe o que é? Vim lhe fazer outro pedido.
– Outro? Tenha a bondade...
– Quero que compareça a uma festa que vou dar lá em casa.
– Oh, queira me desculpar, mas não sou homem de festas.
– Será algo bastante simples e reservado.
– Olha, sabe o que acontece?, as pessoas me aborrecem, todos me conhecem, sempre querem algum favor.
– Ninguém lhe pedirá coisa alguma, garanto. E a festa será bastante íntima.
– Íntima?
– Isso, íntima!
– Então, é de se pensar, é de se pensar...

sexta-feira, maio 11, 2007

Psicanálise
Na verdade, eu preciso reconhecer que gostava dele. Ele vinha para as sessões com antecedência, lia as revistas que se amontoavam na sala de espera, sempre tinha algo a comentar. Depois deitava no divã e falava livremente. Era dentre os freqüentadores de meu consultório o mais culto. Elaborava questões sobre as quais eu jamais pensara. Às vezes, eu me envolvia em suas histórias e em suas construções sobre arte ou literatura. Confesso que se ele abandonou a análise fui eu que não tive capacidade de mantê-lo. E ele veio durante muitos anos. Conseguia não se repetir, seus assuntos mudavam de perspectiva ou traziam sempre novidades. O que aconteceu e serviu de pretexto para que encerrasse o tratamento – aliás, não o encarava como tratamento – não foi de responsabilidade dele. Eu, como psicanalista, é que tenho de dar conta e asseguro a você que não estou sendo tão rigorosa comigo mesma. E ele ainda me "eu sou a parte mais frágil nessa relação". Relação, eis uma palavra interessante. Todo analisando tem relação com seu psicanalista, claro que essa não deixa de ser uma afirmação redundante. Não estou falando, é claro, de uma concepção vulgar de relação, mas se me vem à mente o vocábulo, não está isento de todo o tipo de significado, não está livre de todas as metáforas. Sou eu quem está pensando nisso, logo, faz parte também de meu universo. É lógico que ele também deve ter ido algumas vezes por esse caminho. Sempre, sobretudo no início da análise, há aquele afã de querer conquistar a psicanalista, por isso há tanta procura por profissionais do sexo oposto. Quando a relação é com um profissional do mesmo sexo, a análise não se estende por tempo tão longo. Nossa relação nunca foi conflituosa. Muitos acham que o conflito no processo de análise é saudável e quando é suportado pelo analisando é mais eficaz. Ele suportou bem alguns embates, mas nossa relação quase sempre foi tranqüila. Ele não afastava de primeira o que eu sugeria. Certa vez falou que eu manipulava os pacientes. Confesso que me senti mal com isso. Como pode a analista, que quer permitir a quem analisa a realização do desejo, utilizar-se de manipulação? Mas voltemos à palavra relação. Eu gostava dele, como disse. Beijava-o quando ia embora. Tocava-lhe as costas com suavidade. Não sei se ele reparava este meu gesto; creio que sim, era uma pessoa inteligente. O beijo e o toque eram o meu modo de ir além das palavras, de realizar o meu desejo (o psicanalista também tem desejo, você sabe), de tê-lo sob mim. Torcia para que chegasse o dia de ele voltar. Normalmente vinha de quinta-feira em diante; gostava de atendê-lo também aos sábados. Contava-me o que fazia com a namorada, ou namoradas. Não tinha vergonha. Mas também tinha alguns defeitos de que eu não gostava. Um deles era as roupas que usava; consegui, porém, que pouco a pouco mudasse de estilo; depois até brinquei: "adoro você com essa camisa de listrinhas". Tive sucesso nesse terreno. Ele passou a se vestir melhor e eu passei a gostar mais daquele homem. Fazia as marcações de seus desejos inconscientes, ele ouvia. Mostrava como se davam as repetições. Ele mantinha-se atento. Às vezes acho que ele pensava que a sessão de análise era uma aula onde se aprenderia algo ou se faria alguma descoberta. Então concordava que tudo estava no próprio inconsciente e que precisava analisá-lo melhor através do que eu apontava. "As palavras sempre tem muitos significados, você não é professor de literatura?" Descobriu que o inconsciente se expressa por metáforas. Fui eu que fiquei mal com o que aconteceu. Quando me dei conta da besteira que fizera, chorei muito. Mas não adiantavam lágrimas. Estava tendo comiseração por mim mesma e isso é tudo que se deve evitar. Sobretudo a uma psicanalista. Sei que me fixo no feminino, "uma psicanalista", talvez tenha sido esse um de meus erros, porque é certo que há muitos outros. Passei a pensar que depois do que aconteceu não mais conseguiria atender ninguém. Achei que daria para trás. Mas estou conseguindo superar. No entanto, sinto que as pessoas que atraio não são como ele. Vêm a mim pessoas fúteis, sem objetivos, sem cultura. Ele era diferente. Sei que o ato analítico não é voltado para quem tem cultura; todos possuem seus desejos, o inconsciente de quem é muito culto funciona como o de outra pessoa qualquer. Mas há construções interessantes e processos simbólicos mais requintados nas pessoas que estudam. E você sabe, a própria análise é um processo de estudo. Às vezes torço para que ele volte, às vezes me dou conta do meu próprio egoísmo e acho que vou gostar tanto mais dele o quanto estiver longe de mim. Vou imaginá-lo como alguém que conseguiu aprender por si próprio. Certa vez, num filme europeu, um psicanalista deixou a profissão devido a um acidente na família. Comunicou para seus pacientes, até mesmo recomendou-os a outro profissional. Mas me lembro de uma mulher altiva, de expressão firme, que disse: "não, acho que não mais preciso, vou tentar ir por minhas próprias pernas". Interessante a expressão "próprias pernas"; não sei se é exata para o ato analítico, mas creio que foi isso o que ele fez, ou o que anda fazendo. O real sempre irrompe de forma devastadora, como um terremoto, como um acidente da natureza. Por mais que sejam firmes as construções, esse real não deixa de fissurá-las, não é mesmo? A partida dele foi um tipo de irrupção desse real. E olha que ele sempre quis saber melhor sobre isso, parece que não entendia. Acredito que agora ele já entenda. Não é possível a uma pessoa querer dar conta de todos os aspectos de uma questão, não se pode pensar em todas as coisas que podem acontecer. Quando se sai de casa, sobretudo para uma estadia longa, procura-se verificar se não foi negligenciado tudo que possa causar problemas a casa ou à vizinhança; uma válvula de gás aberta, uma torneira mal fechada, algum alimento perecível sobre a mesa, ou mesmo uma janela esquecida sem a tranca. Quem sabe um vento mais forte a abrirá e soprará sobre o estofado a brasa ainda incandescente de um cigarro; e quando estivermos de volta, teremos então sob nossos olhos apenas as ruínas daquilo que um dia foi nossa casa. A partida dele foi uma espécie de descuido. Ele ainda não estava pronto. Mas não se pode prever o que há de causar as catástrofes. É possível não esquecer o guarda-chuva ao se sair de casa numa manhã nublada, mas não é possível prever um vendaval que partirá um galho maior e que este virá nos atingir a cabeça. Eu sempre falei para as pessoas em meu consultório que a vida é uma sucessão de perdas, que é preciso saber perder para ganhar; agora sofro com uma delas. Quando se está do outro lado do divã, a situação é outra; mas quando se permanece sobre ele, sentimo-nos tão frágeis quanto qualquer outro ser humano, por mais importante ou por maior conhecimento que tenhamos. Sabe, já se vão alguns meses, ou quase um ano e a partida dele até afastou outros pacientes. Não sei explicar isso, ou melhor, sei, cada analista tem o analisando que merece, não é assim que se fala entre os próprios psicanalistas, às vezes até mesmo com chacota? O inconsciente mostra-se mais à flor da pele do que nunca nessas horas. Mas não há de ser nada. Nessa vida, a tudo se acostuma. Mas lhe digo mais uma coisa. Não desejo revê-lo. Não, por favor, não me diga que é denegação. Não desejo revê-lo e ponto final. Não, essa recusa não é o oposto extremo do meu próprio desejo.