quinta-feira, outubro 19, 2006

Desemprego

Cruzava eu o movimentado Largo da Carioca numa manhã ensolarada de dezembro quando, subitamente, senti um toque às costas. Voltei-me. Era Agnaldo, e qual não foi o seu espanto:
- José, como vai? O que tem feito? Há quanto tempo ... - e mais perguntas triviais de alguém que há muito não vê o amigo.
Trabalháramos juntos durante alguns anos, fôramos verdadeiros amigos; ele confiava em mim e me contava até mesmo seus segredos mais íntimos. Depois a empresa me demitiu alegando excesso de funcionários; então, desapareci.
Após alguns instantes de hesitação, meio sem jeito, fez a pergunta crucial:
- Em que você está trabalhando atualmente?
Num gesto brusco, joguei minha maleta entre seus braços e mantive as mãos levantadas como se não a quisesse de volta.
- Vendo malas, valises, maletas - dizia enquanto ele, assustado, tentava segurá-la.
Me olhou espantado já abraçado à pequena mala, tentava dizer alguma coisa. Sorri e continuei:
- É da melhor qualidade, couro legítimo, vários compartimentos, pode observar, não há melhor no mercado.
Agnaldo me olhou de novo, agora comovido. Fez que ia comprar. Talvez pensasse sobre minha situação, talvez quisesse me ajudar. Eu já fora um bom funcionário, ganhara bem, mas naquele momento... Fez menção de me devolver a mala para tirar o dinheiro do bolso, mas, de repente, exclamou:
- A mala está cheia de coisas, veja isto!
Dei uma sonora gargalhada e então respondi:
- É tudo brincadeira, não vendo mala alguma, vamos tomar um café - convidei.
Respirou aliviado, me devolveu o artefato e caminhamos para o bar mais próximo.
Irônico, acrescentei:
- O café é por minha conta.

segunda-feira, outubro 02, 2006

In extremis

Continuava sentado junto à mesa tentando ordenar as idéias. Naquele dia, inspiração era algo difícil; nada me vinha à cabeça. Havia prometido uma matéria sobre determinado assunto, mas a folha virtual ia branca. Fui até à janela algumas vezes, acendi e apaguei vários cigarros. Fumei cada um deles até pouco mais da metade. O ar da sala tornara-se insuportável. De repente, uma mulher próxima à janela, no outro bloco do edifício. Havia muito que trabalhava naquele lugar e nunca a observara. E como era bonita. Segurava algumas folhas de papel, parecia estar lendo ou examinando algum documento. A postura dela era de uma planta altiva e elegante que derramava galhos pleno de flores recentes. Permaneci no mesmo lugar por mais algum tempo. Tive a esperança de receber de volta seu olhar, mesmo que ao acaso. No entanto, não aconteceu. Voltei-me após ela desaparecer. Mergulhei novamente nos temas que tinha em mente. Cheguei a tocar no maço de cigarro mais uma vez, mas reparei o cinzeiro cheio de pontas. A proteção de tela já aparecera. Pequeno avião atravessava céu azul informático. Era o efeito do tempo. Em breve, o monitor ficaria negro. Proteção quase in extremis; ainda me restava o automático, inação total. Era o espelho de minha mente naquele momento. A tarde já avançava. Logo escureceria e a cidade começaria a fervilhar, as pessoas deixariam os grandes prédios do centro: umas voltariam a suas casas, outras iriam aos bares, restaurantes, conversariam, ririam...
Fui ao banheiro; lavei as mãos e dei com minha fisionomia no espelho. Não me lembrava qual a última vez em que me observara tão de perto. Os olhos pareciam mais fundos; a testa tinha rugas que me lançavam na incerteza dos anos...
À janela, a mulher do outro lado reaparece; agora me olha. Percebo em suas mãos papel límpido com alguns algarismos; mapa desenhado a números. Detenho-me ante a possível alucinação.
A mulher: planta de caule delicado, folhas finas, flores amarelas.